Saturday, August 30, 2014


A Cruz – Parte I


O Calvário - Cicatrizes profundas, resignação e amadurecimento.

Um símbolo, pela sua natureza associativa e agregadora, diz mais do que se vê à primeira vista, podendo ser lido em vários e níveis. Seus atributos se mostram total ou parcialmente de acordo com o contexto, o que é mais evidente quando possui significados muito diferentes.

A Cruz é um bom exemplo. Principal símbolo do cristo sintetiza a parte mais importante de sua história: cumprimento de sua missão. Para salvar a humanidade, ele morre crucificado, ressuscitando três dias depois. Assim, a cruz não só alude à sua morte e ao sofrimento, como também à sua vitória sobre ela.

A Cruz do Calvário também é a da redenção, descrevendo a vitória, APÓS o sofrimento. A história de Sérgio Silva ilustra importantes aspectos do calvário da carta 36 e sua via crucis.

Fotógrafo freelance, resolveu registrar a manifestação do dia 13 de junho de 2013, em São Paulo e, como relata, foi seu primeiro contato com um ambiente de conflito. Infelizmente, foi vítima da crueldade e truculência policial tendo sido alvejado em seu olho esquerdo, perdendo a visão.

“Silva teve a retina do olho esquerdo deslocada para um lado, afundamento da cristalina e um corte com a perfuração que acarretou em cinco pontos internos, deixando a estrutura ocular totalmente danificada.”

O ataque das forças de segurança é representado pela carta 11, o chicote, arma utilizada no açoite de cristo ao longo da via crucis até o calvário. Essa correspondência religiosa, mitológica e histórica nos fornece elementos importantes para compreensão da relação das duas cartas, nos levando a entender o chicote como parte da cruz, vindo a ser uma das faces da sua experiência e vivência. Através dela que se formam as chagas que se tornarão as futuras cicatrizes, marcas eternizadas de um doloroso período transformador. Tudo isso ganha uma dimensão e um alcance maiores do que o habitual por serem símbolos religiosos, ou seja, há um componente de destino, de uma força maior atuando.
Mesmo sendo um profissional no exercício de sua função, tendo o direito de ter a sua segurança garantida, foi mutilado por quem deveria protege-lo. Sergio Silva só encontrou como resposta da PMSP e do Governo do Estado de São Paulo, o SILÊNCIO. A omissão dos seus algozes garantiu peso extra em seu fardo.

Com feridas físicas, psicológicas e emocionais abertas, o fotógrafo se encontrou desamparado e sem possibilidades de trabalhar, restando-lhe recorrer à família, amigos e à sua fé:

"“Não é um bom momento para mim. Ainda tenho um pouco de trauma. Principalmente por constatar que a violência não parou. Foi o pior dia da minha vida. (...) Assim que tive alta do hospital e fui para casa, eu me assustava sem motivo. Estava sentado no sofá e fazia um gesto brusco, um espasmo acompanhado de uma espécie de grito. Minha filha começou a ter o mesmo tipo de sintoma"

“Ficou também mais difícil de trabalhar. Meu campo de visão diminuiu 50%. Não foi fácil e continua não sendo. Estou tentando me reencontrar como fotógrafo. Todo fotógrafo fecha um olho e deixa outro aberto para fotografar. Mas, antes disso, você precisa ter um campo de visão ampliado, noção de profundidade. E, hoje, tenho isso reduzido. (...) Entretanto, a fotografia é meu instrumento de trabalho e tenho muito gosto por ela. Isso me dá forças para não desistir. ”

Até o dia de hoje, mais de um ano depois, o fotógrafo ainda luta para superar o trauma adquirido e se adaptar aos graves danos permanentes e os temporários que ainda não passaram, causados pela ação brutal e desumana do Estado. Uma das formas de lidar com tamanho peso foi ter-se tornado ativista tendo em uma da de suas pautas a luta pela desmilitarização da polícia.

A carta 36 nos mostra que, por mais que sejamos otimistas em relação à vida, há situações sobre as quais não podemos agir e danos que não podem ser reparados, nos restando duas alternativas: aceitar ou sofrer.

A cruz traz cicatrizes, marcas profundas. Mesmo nas representações de Cristo após a ressureição, ele traz as chagas, as marcas da crucificação. A sua superação exigirá esforço, alta capacidade de resignação e readequação à uma nova realidade, mas também a possibilidade de transcendência espiritual, da aquisição de um significado maior para a vida.

Nela está escrito o destino. O inevitável, a elevação e o crescimento através do sacrifício. A sua haste vertical cruza a horizontal, representando a interferência de um poder superior sobre o mundo físico, o céu penetrando na Terra, interrompendo a linha, formando um divisor, + . Nada será como antes.

Essa experiência extrema pode levar mais do que temos se não formos fortes o suficiente. Esse tom mais intenso é dado pelas cartas que a acompanham.

O destino, situações quem exigem esforço, marcas profundas deixadas por experiências e relações, a sensação de peso, o cansaço, a sobrecarga, o sacrifício e o auto sacrifício; o fardo, a dor.

Esse é UM DOS LADOS da Cruz.

Na segunda parte do texto, falaremos da redenção que será ilustrada por uma experiência pessoal, minha.



Para saber mais sobre o caso do fotógrafo:

http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-06-03/ainda-tenho-trauma-de-protestos-diz-fotografo-que-perdeu-olho-um-ano-atras.html

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/12/06/o-estado-e-mais-cego-do-que-eu-diz-fotografo-que-perdeu-o-olho-em-protesto.htm

http://focusfoto.com.br/justica-dispensa-estado-de-pagar-conta-hospitalar-de-fotografo-que-perdeu-olho-em-protesto/

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