Wednesday, December 21, 2011

Redescobrindo o Baralho Cigano - Palestra ministrada na II Mystic Fair, outubro de 2011

Bem, essa palestra foi apresentada na II Mystic Fair, que aconteceu em São Paulo, em Outubro desse ano (2011). e é uma síntese das minhas ideias e das pesquisas que venho realizando sobre o baralho cigano ao longo dos últimos dez anos. Então, vamos nessa!

Baralho Cigano no Brasil e Petit Lenormand na Europa e no resto do mundo.
Na verdade as duas designações surgiram na europa, praticamente na mesma época, e se são conhecidas em todo o mundo, porém, no Brasil, o termo baralho cigano é mais comum e isso se deve a uma questão histórica que abordaremos mais a frente. É importante que conheçamos os nomes que lhe foram atribuídos pois eles são indicadores da forma como o baralho será visto e entendido pelos lugares onde é encontrado. De todos os países, o Brasil desempenha um papel especial na história e simbolismo do baralho cigano. Ainda não se divulga nem se fala muito sobre isso lá fora, mas espero que essa realidade seja outra nos próximos tempos.

Várias hipóteses sobre a sua origem e criação são divulgadas mas será que tem fundamento?

Umas mais divulgadas origens do baralho é a cigana. Agora, pensem comigo... Aplicando uma simples regra de simbologia veremos que todo sistema simbólico reflete elementos comuns à cultura em que surge e se formos por aí, a teoria cigana torna-se inadequada e totalmente fora de contexto provando-se incorreta. Para entendermos porque basta olhar para 3 cartas em especial: a carta 26, o livro e a 27, a carta que não se adequam à cultura cigana por essa ser uma cultura ágrafa, de tradição oral. Seguindo essa lógica, a carta 4, a casa, símbolo do sedentarismo contraria uma das mais fortes características desse povo de natureza itinerante, que é o nomadismo. O oráculo cigano por excelência é a quiromancia e não a cartomancia que eles vieram a ter contato somente quando chegaram à Europa e o incorporaram às suas práticas, não criando, mas agregando.

Essa é a hipótese mais divulgada atualmente. É interessante notar quantas coisas se afirma com um material tão escasso disponível. O primeiro grande erro é colocar Lenormand no nível dos ocultistas da época. Ela não era uma oculista, uma iniciada nas grandes ordens esotéricas, ela era uma cartomante, quiromante e nem sei se podemos afirmar que ela era astróloga. As descrições de suas consultas mostram que ela usava uma série de baralhos com figuras estranhas, segundo alguns, e isso não faltava em sua época quando houve um boom na produção de baralhos para fins divinatórios que por sua vez tinham uma finalidade mais lúdica do que outra coisa. Lenormand escreveu cerca de 15 livros e em nenhum deles mencionou qualquer coisa acerca do baralho cigano ou sobre a criação de qualquer oráculo. Outro fato importantíssimo é a primeira edição do baralho cigano ter sido produzida na Alemanha por volta de 1840, ou seja dois ou três anos antes de sua morte, dessa forma, ela não usou esse baralho a sua vida toda. Por essas razões, a teoria Lenormand é totalmente sem fundamento.



Bem, se tudo que todos querem acreditar e que parece tão lindo e tão mágico não verdade, onde ela está, então? Segundo Giordano Berti, um dos maiores especialistas em história das cartas do mundo, o petit lenormand surgiu na Alemanha, por volta de 1840, criado, possivelmente, por um artista local encomendado pelo seu fabricante, no caso a Dondorff. Esse artista inspirou-se, segundo evidências encontradas na simbologia de suas cartas, em dois baralhos: O sibila dos salões e o petit etteilla. O baralho e a obra de Etteilla são a base de muitos baralhos cartomanticos dos séculos XVIII e XIX, bem como o sibila dos salões, que surgiu em 1828 e deu origem a vários outros baralhos que são simplificações e reduções de suas cartas. A simbologia do petit lenormand não é exclusiva dele, havendo vários outros baralhos com simbologia análoga possuindo cartas como o cão, a casa, a chave, etc. O nome baralho cigano foi-lhe atribuído por um fabricante de cartas anônimo como mera estratégia de marketing bem como o nome de mlle lenormand. Quando falamos de história estamos falando de fatos, não de especulações.

Os termos escola brasileira e escola europeia referem-se à forma como o baralho é estudado, à linha de pensamento sobre ele que se desenvolve em nosso país e no resto do mundo. Esses termos foram utilizados pela primeira vez na minha comunidade do Orkut (baralho cigano-petit lenormando), pelo meu amigo e tarólogo Marcelo Bueno há alguns anos atrás e a partir daí passou-se a utilizá-los mais amplamente. A escola europeia apresenta a proposta original de estudo das cartas, sendo seu simbolismo estudado a partir dos conteúdos simbólicos provenientes do imaginário europeu enquanto a escola brasileira se forma a partir de forma sincrética, buscando referencias no imaginário dos cultos afro-brasileiros trabalhando com associação aos seus deuses e os elementos naturais a eles ligados, compondo assim uma forma própria, única e particular que tem provocado alterações em sua iconografia criando baralhos que vão, cada vez mais, se afastando do original e dando forma, gradualmente, ao que poderíamos chamar de um oráculo genuinamente brasileiro. Acredito que tudo isso tenha-se dado pela introdução do baralho nas oferendas aos ciganos espirituais que fazem parte do panteão dos cultos afro-brasileiros. Ao perceberem a semelhança de suas imagens com elementos de seus ritos, cultos e deuses começou-se a lê-lo através de uma linguagem própria, dando origem assim à escola brasileira. Nesse caso é engraçado como o que é mito num lugar é fato no outro. Enquanto a teoria cigana é totalmente infundada na Europa ,é através dos ciganos que o baralho se torna uma realidade em nossa cultura!

A sua característica mais marcante é a proximidade das imagens com a realidade. Elas são representações do cotidiano e podem ser encontradas se olharmos a nossa volta sem muito esforço, o que facilita uma compreensão mais profunda de seus símbolos e permite a sua vivência e experiência imediata. A casa, o barco e o cão rementem a qualquer leigo ao seu significado divinatório mesmo que esses nunca tenham sequer ouvido falar no baralho. O slide acima mostra três representações interessantes. A carta do urso e o próprio animal em seu estado natural, forte e robusto. Juntamente a ele, manifestando um dos seus níveis de signifcação, está o que a comunidade gay chama de “bear”, ou seja, urso em inglês, que são homens peludos, corpulentos, fortes ou gordos que agregam em si características físicas semelhantes ao animal numa espécie de totemismo. A raposa que vem nos roubar as galinhas, caminhando suavemente com sua pelagem macia, sedosa e bela, símbolo da fala mansa, da sedução, do aspecto sedutor do diabo na cultura europeia encontra forte ligação com o malandro, o pelintra por natureza e, como não podia deixar de ser com o sedutor carioca que arranja sempre um jeitinho para tudo. Os jardins, lugar do lazer e do convívio, o ponto de encontro e circulação de pessoas que pretendem ver e serem vistas reunindo as mais belas espécies vegetais é encontrando no nos parques públicos como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e encerra em si o glamour das passarelas e da moda consumida pela massa.
É inevitável caminhar pelo Rio e se deparar com algum elemento simbólico do baralho cigano. Essa busca pelo seu simbolismo na cidade resultou num trabalho bem legal que apresentarei mais tarde quando estiver concluído. Mesmo assim, decidi dar uma pequena amostra dele nessa palestra. O que achei muito bacana foi ter conseguido usar o baralho para conectar as pessoas à cidade, fazendo-as redescobri-la e re-significá-la, vê-la de forma especial. O chão que a gente pisa e joga lixo está repleto significado. Os edifícios, as igrejas, os monumentos, a cultura carioca, a paisagem natural, enfim, tudo! É como mergulhar nas cartas e ao mesmo tempo descobrir que elas estão dentro de nós. O Cristo redentor, o mais cartão postal do Rio já encerra em si três cartas que descrevem bem a realidade e a alma carioca. O Cristo, ou a nossa cruz, se assenta sobre o morro do Corcovado, a nossa montanha, e recebe, de braços abertos, o sol todos os dias, abençoando a nossa cidade e todos que nela vivem. Seguindo a escola europeia podemos fazer uma leitura bem legal dessa configuração aplicando-a à realidade carioca. A montanha que significa os inimigos poderosos, os bloqueios e as dificuldades intransponíveis ou antigas, delimita as fronteiras, segrega e separa simboliza as antigas condições de limitações que o povo vive diariamente sofrendo grandes restrições de tudo e criando uma paisagem de enorme contraste entre as classes sociais que interagem mas não se misturam. A cruz que abre os braços pro sol indica a vitória sobre essas adversidades e a capacidade de superação através da aceitação dos limites pessoais, da busca da fé e das vivências religiosas que são alimentadas por uma vontade de viver e um otimismo inabalável. A cruz e o sol são símbolos ligados a Cristo e ambos falam de morte e renascimento indicando uma poderosa capacidade regeneradora, digna o nosso povo. Fé e alegria de viver são as armas mais eficazes contra as dificuldades do mundo, os obstáculos naturais e sociais.

Não só em monumentos estão os grandes significados, mas nas coisas mais simples também. A foto mostra o detalhe de uma grade comum presente em muitas casas e prédios; e os detalhes em pedra portuguesa da calçada em frente ao museu nacional de belas artes, na Cinelândia, centro do Rio. A ponta da lança que compõem a grande é uma flor-de-lis, um lírio, a carta de número 30 do baralho cigano que traz o rei de espadas em sim. Espadas, além do simbolismo militar, fala da nobreza também. A associação do lírio, um símbolo mariano ao rei de espadas pode ter a sua origem numa referencia à família real francesa que adotou a flor-de-lis para representá-la em seu brasão e que se constitui numa referência indireta a uma ligação da mesma à Maria e Jesus como seus ancestrais. Então ele funde a nobreza e a espiritualidade. A carta da eleição e da luz. O trevo é uma representação simbólica da trindade divina, pai, filho e espirito santo e está presente em várias construções e igrejas. Cristianizado por São Patrício, representava o aspecto triplo dos deuses e encerrava em sua simplicidade a essência da própria divindade. Na calçada temos a fusão desses dois símbolos, como podem notar. Um grande trevo que contém três lírios em cada uma de suas folhas sintetizando os mistérios e a fé cristã.


A árvore e o jardim no próprio Jardim Botânico representando a vida, a natureza e a ligação que existe entre todas as coisas que são partes de um todo e por isso, interdependentes. A preservação da biodiversidade numa coleção viva do que é necessário, belo e rico. A combinação da interação do homem e a natureza criando a arte e proporcionando o lazer e o bem-estar.

Sempre digo que uma das melhores formas de se estudar os símbolos do baralho cigano é estudando simbolismo cristão. Lembremos que o baralho cigano foi criado na Europa vitoriana e que seus símbolos representam elementos cotidianos, por isso há 100% de influência cristã em sua iconografia. Essas fotos foram tiradas na catedral de Petrópolis numa visita que fiz ao meu querido amigo Giancarlo Schmid. As três virtudes teológicas (fé, amor e esperança, da esquerda para a direita) colocadas num vitral parecem cartas em sequencia numa tiragem. O cavaleiro, a cegonha, a cruz, entre tantas outras estão lá.

O carta 19, a Torre, representa as estruturas construídas pelo homem, os monumentos, as bases e os sustentáculos dos mesmos e pode ser vista tanto nas colunas dos edifícios como nos próprios prédios e arranha-céus em si. Como dizem os poemas inscritos nela em algumas versões: “... Uma vida longa e uma velhice feliz.” que é uma alusão ao sucesso das construções bem feitas que perduram através dos tempos resistindo aos elementos e preservando a sua integridade. A base sólida, o alicerce firma. O patrimônio histórico, cultural e arquitetônico preservado.

Nas calçadas da av.Primeiro de Março a âncora, em frente ao clube naval e o peixe, um símbolos da cidade do Rio, desenhados na pedra portuguesa. O transatlântico passeia pelo mar de Copacabana. O navio, em especial, tem uma forte relação com nossa cidade pois representa, para além das viagens longas, a troca cultural o contato com o estrangeiro, portanto o turismo e o comércio, características típicas da nossa cidade que é um dos pontos turísticos mais famosos do mundo e destino cobiçado por muitos. A âncora e o peixe em associação com o navio simbolizam a constância e a estabilidade dos recursos provenientes das atividades culturais e turísticas que constituem boa parte do orçamento do estado e a constante produção de cultura.


Bem, espero que tenham gostado e aproveitado. Para quem se interessar por consultas e cursos, é só entrar em contato através do meu e-mail ou celular. Muito obrigado!