Monday, April 19, 2010

Três Cartas, Uma Vida e um Livro

As vezes os ventos sopram e trazem consigo nuvens. Por vezes carregadas, prontas a se precipitar em chuva, chuva que escorre pelo rosto em gotas de água salgada, águas do coração que transbordam pelas janelas da alma denunciando sentimentos aprisionados que irrompem ao vencer a tensão gerada pela necessidade de libertação da dor que cria uma pseudo cura tapando as feridas profundas com uma fina camada que ilude e engana através de um aparente e falso equilíbrio.

As Núvens: Sentimentos se sobrepondo a razão. Confusão, ilusão, lágrimas, embriagues.

Certas situações na nossa vida são tão marcantes que levam tempo para poderem ser, realmente, assimiladas. O que acontece é que o pulsar do latejar da inflamação aumenta o seu intervalo a medida que o tempo passa e essas grandes lacunas denunciam o aumento gradual da nossa força mas a cura ainda não se instaurou. O confrontar com algo que pensamos ter acabado gera surpresa e tira o nosso chão mas relembrar ou reviver situações danosas num momento de maior força pode nos assustar de início mas também nos mostra que já não somos mais os mesmos e que dessa vez é diferente. Algo mudou. Estamos mais fortes e mais conscientes e, dessa forma, podemos iniciar o processo final de cura e libertação.

A Cruz: Vitória após sofrimento, experiências de vida, crescimento através da dificuldade, sacrifício e superação.

Foi na Van , a caminho do trabalho, depois de, na noite anterior, ter tido um sonho onde eventos simples porém altamente significativos aconteciam, sinalizando que certas coisas que deveriam estar mortas ainda davam sinais de vida, que uma passagem do livro de Diedra Roiz, O Livro Secreto das Mentiras e Medos, uma obra intensa e viva, primorosa, foi o catalisador de toda uma breve e importante crise. Assim era a passagem:

“Arquejou… Suspirou… Gemeu na minha boca… Me apropriei… Nenhuma distinção entre o prazer dela e o meu…”

“Havia sido… Tão além do plano físico… Que parecia realmente fazer sentido. Ter sentido. Ser sentido.

Jaque me segurou pelos cabelos, prendendo minha cabeça entre as mãos. Colocou a boca no meu ouvido e falou lá dentro, pausadamente, cuidando para que nenhuma palavra fugisse:

- Eu te amo.”

Piegas? O amor é piegas. Muito mais do que uma mera descrição de um ato sexual, nas palavras da personagem, a passagem surge a descrição de uma entrega total e incondicional, algo que raramente conseguimos fazer, um momento em que (in)voluntariamente investimos tudo, damos o melhor de nós para alguém que amamos … damo-nos. Inteiros. De corpo e alma. Se essa escolha for errada, o dano é proporcional ao investimento e a partir daí já sabemos o que se segue.

O coração: Amor, sentimentos, emoções radiantes, calor humano, perdão, aceitação, entrega, ser genuíno, viver intensamente, abertura.

Sincronisticamente, ao ler o trecho do livro, o rádio do veículo, num volume um pouco acima da normal preenchia o ambiente com a doce melodia de Dione Warwick cantando em seu refrão: “… I know I’ll never love this way again …” conectando sonho, recordações, frases e sentimentos em algo que ia além de mim. Não sei se tudo começava na música ou nas minhas recordações mais antigas que jazem na minha memória. Dentro e fora eram uma coisa só.


No mesmo instante, instintivamente, um grande insight me fez reverter essa situação aparentemente tão destrutiva em algo construtivo.

Lenormando na Dor, Lenormando em Diedra, Lenormando em Dione. D +!

Transformei toda essa cena numa tiragem, numa combinação de três cartas:

As Nuvens, o Coração e a Cruz.


Esse é o processo que todos percorremos depois das grandes desilusões e decepções afetivas.

A carta seis em sua nebulosidade, os vapores gerados pelos sentimentos em ebulição nublam a nossa razão, nos fazem perder o caminho, andar a deriva sem conseguir enxergar qualquer direção, indo e vindo ocasionalmente até se precipitarem e se dissolverem. Eles sufocam o coração e trazem consigo recordações que nosso limitado conceito linear de tempo insiste em dizer que está “para trás”, longe, mas que nossa vivência nos faz entender o oposto.


O palco de tudo isso: O coração, para onde tudo converge e de onde tudo sai ao pulsar das suas sístoles e diástoles. Pleno de sentimentos e emoções, pulsante e vivo. Receptor e transmissor de tudo que nos toca. Vibrando na sintonia do resultado dos acontecimentos em relação a realização de nossas expectativas.


A Cruz traz encerrada em si a dor do calvário e o peso que se carrega e que faz os nossos caminhos parecerem uma longa estrada. Ressentimento e mágoa. Arrependimento. Negação. Amor e Ódio numa mistura intoxicante até que, finalmente…

Libertação!


O momento de redenção, de precipitação das nuvens, de libertação da angústia e de compreensão da razão de tudo eliminando o sofrimento.

A carta 36 fala de crescimento e amadurecimento através das nossas vivências geradas ora pelo destino ora pelo nosso livre arbítrio.


No fim nos resta a cicatriz. Produto da afiada foice de Saturno que corta dolorosamente sem dó nem pena libertando e ao mesmo tempo fortalecendo e estruturando como na poda de uma árvore. Essa marca é o sinal de que podemos superar mas nunca apagar o passado pois esse é a base da única coisa que realmente temos: o nosso momento, o nosso presente cada vez mais rico a medida que vamos vivendo. E nisso morte e vida se mostram como faces da mesma moeda, como os dois pólos opostos que fazem-nos ,e o mundo, o que somos.


Um coração, uma alma que cresce e se fortalece.

As nuvens podem ser tanto as tempestades das emoções como as águas fertilizantes de uma chuva e a cruz um grande fardo como uma grande redenção que, alternadamente em seus opostos, afetam e moldam nosso coração, o nosso cerne, a nossa alma.

E Lenormando em Diedra, em seu Livro das Mentiras e Medos:

As nuvens: “Aquilo me trouxe recordações. Milhares de lembranças. A repetição daquela mesma cena.

"Mas eu não conseguia parar de chorar. Estava incosolável. A Impressão era que toda e qualquer possibilidade de felicidade havia se acabado."

"Não prestei atenção. Fiquei ali, à deriva no meu mar de sofrimento. Sem nenhuma noção de espaço, lugar ou tempo. Tão imersa no pranto, que quando a mão de Théo tocou meu ombro, saltei.”


O Coração: “Arquejou… Suspirou… Gemeu na minha boca… Me apropriei… Nenhuma distinção entre o prazer dela e o meu…”

“Havia sido… Tão além do plano físico… Que parecia realmente fazer sentido. Ter sentido. Ser sentido.

Jaque me segurou pelos cabelos, prendendo minha cabeça entre as mãos. Colocou a boca no meu ouvido e falou lá dentro, pausadamente, cuidando para que nenhuma palavra fugisse:

- Eu te amo.”


A Cruz: “Todo tormento ou grande sofrimento acaba nos obrigando a trilhar caminhos. Por mais que não se faça nada. É a picada do inseto, a coceira, o incômodo que ela causa que obriga o movimento. Caso contrário… Jamais se moveria.”


Cotidiano, mundano, humano e … divino. Esse é o nosso Lenormand.